quarta-feira, 19 de maio de 2021

Uma leitura para o LIVROS A OESTE

em resposta ao desafio do
João Morales
para o festival
Livros a Oeste

um poema do livro 
PAZ TRAZ PAZ
de
Afonso Cruz

 

TÍTULO: Paz traz paz

AUTORIA: Afonso Cruz
ILUSTRAÇÃO: Afonso Cruz
PAGINAÇÃO E CAPA: Maria João Lima
ISBN: 978-989-665-908-0
DEP. LEGAL: 462140/19
1.ª EDIÇÃO: outubro 2019
IMPRESSÃO: Printer Portuguesa
EDIÇÃO:  Companhia das Letras 
Penguin Random House
Avenida Duque de Loulé, 123
Edf. Office 123 - Sala 3.6
1069-152 Lisboa
E-mail: correio@penguinrandomhouse.com

A Lenda da Matéria - Epílogo

 

EPÍLOGO

Com muita prudência, mas cansadíssima de esperar, uma sombra colorida em holograma saiu do foguetão e começou a explorar a superfície do planeta Oculto.

– Alô, alô! Grande astronauta Joaresa Filéx! Está aí alguém?


ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride


A Lenda da Matéria #8


CAPÍTULO 8
O SELO SAGRADO
 
 
O Professor convidou-nos a descansar em camas que pareciam ninhos pendurados na sua árvore. Ou melhor, na árvore que era ele. Foi como se tivéssemos passado a noite ao seu colo e acordámos muito cedinho, completamente novos.
O caminho para o lugar sagrado onde se guardava o Selo do povo ocultiano parecia não ter fim. Talvez não fosse assim tão longe, mas para mim, que estava desejosos de lá chegar, parecia a estrada para o fim do mundo. Os ocultianos moviam-se de uma forma estranha. A Arya desaparecia de repente aqui, para aparecer lá adiante, e ficava a apanhar flores enquanto esperava por nós. O Box viajava completamente incógnito, transformado em poeirinhas douradas, e só sabíamos onde ele andava porque estava tão excitado como nós, e levou o caminho todo a soltar risadinhas nervosas. O Professor planava. Assim mesmo, não há outra maneira de o descrever. Ia alto e direito, de olhos fechados e a cara muito estendida para o céu, os braços cruzados em frente ao peito, as pernas imóveis e os pés paralelos ao chão, mas sem lhe tocar. Planava a uns vinte centímetros da relva a uma velocidade que nos obrigava a acelerar o nosso próprio passo.
O Selo Sagrado começou a ver-se a uma grande distância e era uma visão verdadeiramente impressionante. No centro de uma enorme planície repousava um círculo de pedras gigantescas, alinhados na perfeição. A seguir, num círculo concêntrico mais pequeno, corria uma espécie de rio de águas o mais transparentes que alguma vez tínhamos visto. No centro de tudo, guardava-se um altar em pedra. Quando nos aproximámos percebemos que toda a superfície das rochas estava gravada com símbolos.
– Olha! – admirou-se a Teresa, – isto são hieróglifos. Lembro-me de os ver no livro de História.
– E aqui parecem caracteres árabes. – disse a Joana de um outro ponto do monumento. – E ali o alfabeto cirílico, e o romano, e estes parecem símbolos chineses….
– Sou capaz de jurar que vi este gatafunho num livro de Matemática… – disse o Filipe, – o Pi ou lá o que é!  
– Como é que há aqui gravações de todas as escritas e línguas do mundo? – perguntei ao Professor.
– Somos todos uma só família – respondeu ele solene, – Todas as linguagens são uma só linguagem. Agora, Alex, anda cá.
O meu corpo tremia todo sem eu poder evitar de tão ansioso eu estava. Tinha logo de ser eu o primeiro!
Atravessei o rio e a água, que mal me passou os joelhos, estava agradavelmente morna. O Professor guiou-me até ao altar e pousou as minhas mãos sobre a pedra gravada. Ele fechou os olhos e eu imitei-o. Ele começou a murmurar um cântico e eu imitei-o outra vez. E o meu corpo continuava a tremer e a aquecer um pouco e a formigar por todo o lado. Desta vez, já não eram os nervos, era a matéria a transformar-se em mim.
Senti-me, de repente, inacreditavelmente leve. Abri os olhos e tudo à minha volta era luz. O Filipe, a Teresa e a Joana olhavam para mim de boca aberta e eu percebi que algo maravilhoso tinha acontecido. Olhei para as minhas mãos, mas só havia luzinhas brilhantes. Voltei a fechar os olhos, pensei na tília que a minha avó tem no quintal e quando voltei a olhar para as minhas mãos, eram ramos, fortes, cheios de folhas verdes e florinhas brancas.
– Que cheirinho! – disse a Teresa.
– Meu! Estás um espectáculo – disse o Filipe.
– Agora é a minha vez! – disse a Joana.
E, um de cada vez, todos repetiram o mesmo ritual. A Joana transfigurou-se numa água-viva que parecia nadar suspensa sobre o altar, a Teresa foi substituída por uma enorme quantidade de borboletas, com tonalidades que faziam lembrar as cores das gomas, e o Filipe, claro, apareceu de tiranossauros rex.
No fim, abraçámo-nos muito. Pela felicidade que sentíamos, e, também, porque sabíamos que estava a chegar a hora de regressar.
Antes de partirmos, o Professor deu uma pequena pedra a cada um de nós. Eram muito circulares e achatadas, lisas como os godos da praia, e cabiam-nos na palma da mão. Cada uma tinha gravado um símbolo diferente. Eu tinha uma folha de árvore, a Joana recebeu umas ondas, a Teresa, uma espiral e o Filipe o símbolo de Pi.
– Nestas pedras repousa o espírito do Selo Sagrado. O poder que receberam é grande e precisa de ser respeitado. – disse o Professor. – Sejam cuidadosos.
Mais uns abraços com muitas promessas de visitas, antes de partirmos, finalmente, rumo ao nosso planeta Terra, feitos em partículas de luz, entregues à infinitude do espaço.
Pelo caminho descobrimos que éramos capazes de comunicar entre as nossas consciências, como numa telepatia conjunta. Decidimos que havíamos de partilhar este poder apenas com pessoas que o merecessem.
Amigos da nossa escola? Não, isso seria limitado. Do nosso país? Mas como, se somos todos uma só família. Boas-pessoas? E como é que vamos saber se são boas ou não? As crianças! É isso mesmo. Vamos partilhar este poder com todas as crianças do mundo.

ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride

ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride

A Lenda da Matéria #7

 
CAPÍTULO 7
A PIZZA E O PROFESSOR
 
 
Estávamos mesmo esfomeados! O Box guiou-nos para umas mesas de pedra escura onde estavam pousados uns seixos azuis lisinhos.
– Meu, mas que calhaus tão fixes! Exclamou o Filipe. Pegou num e acrescentou – Mas não me parece muito saboroso! Piscou o olho à Arya, e atirou o seixo para longe…
– Naaãooo! Gritou o Box. – Era o meu almoço!
 O Filipe abriu a boca até ao chão, a Teresa e a Joana apressaram-se a ir buscar a pedra, sacudiram-na e entregaram-na ao jovem ocultiano. O Box pegou nela, com imenso cuidado, e fechou os olhos, a pedra começou a tremer como se houvesse um miniterramoto lá dentro. Uma luz brilhante cegou-nos e, de repente, no seu lugar estava uma incrível maravilhosa, fantástica PIZZA! Cheia de peperoni, montes de fiambre e queijo a escorrer pelos lados!
– Vamos, comam, enquanto está quente! Disse a Arya – Temos que nos pôr a caminho antes da noite.
Comemos tudo até às últimas migalhinhas, era uma delícia! Bebemos a água límpida de uma fonte e, de barriga cheia, fomos ao encontro do Professor.
Caminhámos durante imenso tempo, as sombras das árvores já estavam esticadas na relva azul. Chegamos perto de um penhasco altíssimo onde estava uma espécie de embondeiro agarrado às rochas com o tronco todo torcido pelo vento. Olhei para a Arya.
– Onde está o professor? Vem ter connosco aqui?
A árvore estremeceu, brilhou e explodiu em milhares de poeirinhas douradas que se juntaram, formaram um redemoinho e, subitamente, ali estava o Professor!
Wow! Era velho, tipo mesmo, mesmo, bué velho! Tinha o cabelo branco com umas trancinhas cheias de contas…. Era da cor da Nutella que a Teresa adora. O contraste entre o cabelo e a pele era top! Tinha um olho castanho, outro azul e um enorme sorriso.
– Bem-vindos ao nosso lar, estou muito feliz por vos conhecer. A voz era poderosa e rouca, mas amigável.
– O que querem de mim? Acrescentou.
Enquanto eu o Filipe ficávamos paralisados a Joana e a Teresa aproximaram-se dele e deram-lhe dois beijinhos, tal como costumavam fazer com o pessoal lá de casa.
– Professor, queremos aprender aquela coisa das poeirinhas douradas e das pedras que se metamorfoseiam em pizzas!
– Mesmo. É incrível! – Disse o Filipe
– Se não se importar, Professor, com esse conhecimento podíamos voltar à Terra e mudar tudo. Continuei eu.
O Professor passou as mãos pelas trancinhas e pôs-se a brincar com uma das contas coloridas. Olhou atentamente para a Arya, olhou para o Box, levantou a cabeça com se estivesse a falar com as poeirinhas brilhantes e falou.
– Esse conhecimento está escondido no vosso ADN, só precisam de água pura e do Selo Sagrado do nosso povo.

ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride



A Lenda da Matéria #6

 
CAPÍTULO 6
UMA SÓ FAMÍLIA
 
Era mesmo possível! Mais, era mesmo verdade!
Os ocultianos, os Mestres da Matéria, aqueles seres maravilhosos que pareciam acabados de sair das páginas de um livro de aventuras eram, afinal, naturais do planeta Terra.
– Mas então… – o Filipe tentava dar palavras à confusão instalada nas nossas cabeças. – Então vocês vieram do mesmo planeta que nós?
– Os nossos antepassados vieram do vosso planeta, sim. – Começou a Arya a contar, enquanto fazia um gesto e nos convida para sentar numa espécie de roda.
– Há muitas, muitas voltas ao Sol, os antigos Mestres deixaram de atender ao carinho que deviam guardar à Natureza. A capacidade de fusão com a matéria é um poder que pode alcançar feitos maravilhosos. A montanha onde se ergue este templo, por exemplo, foi trazida à superfície a partir do fogo incandescente das entranhas do planeta. E o templo em si, foi construído, pedra por pedra, com partículas de todas as substâncias encontradas em todas as partes deste mundo. Foi um esforço de todos, conseguido apenas pela harmonia que reinava entre os elementos da nossa primeira comunidade. Mas em tudo, como na própria Natureza, vive uma fracção de luz e outra de sombra e, assim, a capacidade de fusão com a matéria é um poder que, usado sem cuidado pela Natureza, pode provocar efeitos assustadores e terríveis. Foi o que aconteceu. À beira de um cataclismo que acreditaram ser global, os Antigos deixaram a Terra e vieram refugiar-se no mundo que ficava Oculto atrás da luz do Sol.
A Arya suspirou e sou capaz de jurar que, no preciso momento em que expirou o ar dos pulmões, o seu corpo brilhou e perdeu um pouco as formas, como se fosse esfumar-se e desaparecer, mas, logo a seguir, ali estava ela, a mesma Arya de um momento antes.
Parecia que o silêncio se tinha vindo sentar connosco. Olhávamos para as gravuras na parede e eu não conseguia deixar de pensar na relação entre a luz e a sombra, o nosso Planeta Terra e aquele outro, o Oculto, que girava no espaço à sombra da luz do Sol.
– Nunca pensaram em voltar? – A Joana era sempre assim. Nas nossas conversas e mesmo nas aulas, fazia sempre as melhores perguntas. Mal acabávamos de as ouvir, descobríamos que também nós estávamos mortos por saber as respostas.
– Sim, houve uma altura em que três estudiosos foram enviados ao Planeta Terra para registar os estragos do cataclismo. Foi então que soubemos que a catástrofe não tinha destruído todo o Planeta, apenas o nosso Continente da Atlântida. Tinham até sobrevivido algumas ilhas da Macaronésia. Talvez vocês as conheçam.
Trocámos olhares entre nós e sorrimos.
– Conhecemo-las muito bem, – disse o Filipe.
– Mas nessa altura já não era possível regressarmos. – O Box falava com alguma tristeza e eu temi que se transformasse outra vez em poça de água.
– Quando os Antigos fizeram a primeira viagem, – explicou a Arya – passaram muito perto do Sol, e a capacidade de partilhar a substância com a Natureza aumentou de alguma forma. Já não éramos humanos como antes, não saberíamos integrar-nos, seríamos recebidos como estranhos.
– Mas vocês não são estranhos, – disse a Teresa que tentava oferecer consolo ao Box. – Nós somos todos da mesma família.
– Isso é verdade, – continuou a Arya – mas é uma verdade maior do que parece, e é aí que bate o coração de tudo…. Somos todos uma só família. Vocês, nós, a luz, a sombra, todas as partículas da matéria, toda a Natureza. E, como em qualquer família, devemos estar ligados pela ternura e pelo cuidado.
– Nós também passámos perto do sol, – disse a Teresa – achas que aumentou em nós o poder de controlar a matéria.
– É possível.
– Bem! Imagina! – os olhos do Filipe não podiam abrir-se mais enquanto ele falava. – Se pudéssemos aprender, ou lembrar, a ser Mestres da Matéria! Já não precisávamos de carros, nem de comboios, nem de aviões para viajar e acabava-se tanta poluição!
– E éramos capazes de produzir bons alimentos que pudessem acabar com a fome no mundo, – disse a Joana. – Só não sei se haveria gomas… desculpa lá, Teresa.
– Por falar nisso, – o Box pôs-se de pé tão depressa que parecia que ia levantar voo. – Estou cheio de fome! Primeiro vamos comer e, depois, se vocês quiserem, podemos levar-vos ao Professor.

A Lenda da Matéria #5

 

CAPÍTULO 5

OS VIAJANTES DA ATLÂNTIDA

 

Eu fiquei entusiasmado com a ideia. Seria fabuloso se conseguíssemos dominar a matéria como os mestres antigos. Poder assumir a forma de uma árvore, ser capaz de viajar pelo ar, enfim, fazer realmente parte da Natureza.

A Arya sorriu-nos e explicou:

– Venham connosco. Quero mostrar-vos um lugar muito especial para todos os ocultianos. Acho que lá vão poder perceber tudo.

Ela deu-me a mão, tão quente, e caminhámos pela relva azulzinha, num prado deslumbrante e sob o céu alaranjado. As poeirinhas douradas continuavam à nossa volta e aos nossos pés vimos uma espécie de flores transparentes que cheiravam a gomas e chocolate!

Claro que a Teresa se atirou ao chão para provar as bonitas pétalas. Por pouco não as comeu, mas as flores esquivavam-se graciosamente da sua boca, ora para a direita, ora para a esquerda, ora para trás, ora para a frente! O Filipe, o Box e a Joana quase rebolavam de tanto rir.

– Acho que desta vez encontraste uma goma mais esperta do que tu!

As gargalhadas da Arya vieram juntar-se às nossas. Caminhámos mais um pouco e vimos que à nossa frente, se estendia um edifício imponente. Era um templo antigo e belo que parecia ter saído das rochas de um vulcão. O Box entrou primeiro e levou-nos até à parede mais afastada onde podíamos ver umas estranhas gravuras luminosas.

A Arya guiou-nos e pediu-nos numa voz solene:

Tenham cuidado e sejam respeitadores, este é o nosso local mais sagrado. Aqui está guardada a história dos Mestres, o nosso verdadeiro tesouro.

Apontou para as paredes tremeluzentes e, ao aproximarmo-nos mais, vimos que toda a parede estava esculpida com símbolos e imagens estranhamente claras.

Lá no cimo, conseguimos decifrar o sistema solar onde se destacava o terceiro planeta a contar do Sol, a nossa Terra.

A gravura seguinte mostrava um continente bem no meio do oceano Atlântico, que estranho, devia ser um erro.

Olhei para os outros que estavam completamente espantados e continuei….

Mais em baixo, havia uma espécie de cataclismo que engolia o continente e um monte de pessoas pequeninas que fugiam para uma de nove montanhas altíssimas.

No meio da parede, a Joana tocou uma imagem que mostrava pessoas que se desfaziam em pontinhos e viajavam em direção ao Sol.

Na última imagem, a maior e mais nítida de todas, estava um maravilhoso planeta com um céu alaranjado e montanhas azuis....

Arya, Box o que é isto? Não pode ser, pois não? Os Mestres da Matéria? Não, não vieram da Terra, é impossível!

Sentei-me no chão e olhei para a parede completamente abismado.

A Lenda da Matéria #4

 
CAPÍTULO 4
OS MESTRES DA MATÉRIA

Só quando se abriram as comportas do nosso vaivém, e sentimos na cara e nos cabelos o ar fresco que vinha lá de fora, percebemos como estávamos a abafar ali dentro. Saímos todos de uma vez só, encantados com tudo o que, à nossa volta, era tão diferente do que conhecíamos e, ao mesmo tempo, estranhamente acolhedor.
O Filipe, que às vezes se parece com o gato que tem em casa, deitou-se no chão e enterrou o nariz naquela espécie de ervinha azulada que cobria tudo.
– Hummm! Cheira a morangos e às flores das laranjeiras…
A Joana e a Teresa, que não largavam a mão uma da outra, iam dando uns passos em redor. A Teresa a tentar ver tudo ao mesmo tempo, e a Joana a sacar selfies como se não houvesse amanhã, com o telemóvel que nem era dela.
Eu, confesso, estava bastante perturbado com aquela poeirinha brilhante que voava à nossa volta. Uma coisa impossível de definir. Seria, talvez, só luz, se a luz tivesse substância de se agarrar.
Estendi a mão com muito vagar para esses grãos de luz que tão depressa se mostravam como, a seguir, pareciam confundir-se no ambiente alaranjado do céu.
– Onde raio viemos nós parar? – pensei.
– Ó Filipe, pá, o que é que tu estás a fazer?
A voz da Joana fez-me voltar a cabeça. O Filipe corria em direcção às poeiras de luz, com a cabeça atirada para trás, a boca muito aberta e a língua de fora.
– Estava a tentar perceber a que sabem os brilhinhos…
– Não te afastes muito – disse eu. E, antes mesmo de acabar a frase fui eu que fiquei de boca aberta.
Uns passos à minha frente, formou-se um grande remoinho daquelas partículas luminosas que me pareciam cada vez menos poeira, e cada vez mais outra coisa qualquer. As poeiras juntaram-se mais e mais umas às outras e, quando a ponta do remoinho tocou no chão, apareceu na minha frente, como se tudo fosse magia, uma rapariga em tudo parecida connosco. Tal e qual como se fosse uma colega da nossa escola.
Ficámos sem movimento. Só se ouvia a nossa respiração aflita. Depois, aconteceu a coisa mais mágica de todas, que desmanchou a aflição e afastou todo o receio.
A rapariga sorriu.
– Olá! – disse-lhe eu, e abanei a mão porque tinha a certeza de que ela não percebia o que lhe dizia.
– Olá! – respondeu ela, como se fossemos velhos amigos. – Vieram passear até ao nosso planeta? Qua boa ideia!
– Como é que tu falas como nós? – perguntou a Teresa. ­– Tu és uma extraterrestre.
A rapariga voltou a sorrir.
– Bem, talvez. Eu sou extraterrestre porque não sou do vosso planeta Terra, mas para nós, os extraterrestres são vocês!
O Filipe soltou uma gargalhada e, como o riso é contagioso, começámos todos a rir. E rimos e rimos até nos virem as lágrimas aos olhos. Quando já estávamos recompostos, ainda se ouviam umas gargalhadas meio nervosas que não sabíamos de onde vinham. Depois, as gargalhadas passaram a soluços e, por fim, com um som que pareceu um grão de milho a transformar-se numa pipoca, apareceu ao lado da rapariga um pequeno rapaz, muito rechonchudo e corado.
– O meu nome é Arya, e este é o meu irmão Box. Sejam bem-vindos ao planeta Oculto. É um prazer receber-vos cá.
– Os meus amigos tratam-me por Alex, – disse eu enquanto ia em direcção a ela de mão estendida para a cumprimentar. – Estes são o Filipe, a Teresa e a Joana.
– Boorrpuff!
Voltámos a parar os quatro, como que congelados a meio do caminho. O pequeno Box tinha acabado de se desfazer uma imensa poça de água cor de mel, e nós nem sabíamos o que pensar, quanto mais o que fazer.
– Não lhe liguem, – disse a Arya descontraidamente. – O meu irmão fica muito ansioso com as novidades e perde o controlo da matéria.
– O controlo da matéria? – Eu estava muito confuso.
– Sim, o controlo da matéria. Nós os ocultianos somos descendentes dos antigos mestres da matéria. Trocamos a nossa substância com a da natureza à nossa volta. Podemos tomar a forma que quisermos.
– Estou a ver, estou a ver – disse o Filipe enquanto víamos reaparecer o Box, na forma de uma árvore roliça que parecia crescer a partir da água.
– Isso deve dar imenso jeito! – disse a Joana. – E quando queres viajar, voltas àquela nuvem de luz e voas com o vento?
– É mais ou menos isso, sim. – respondeu Arya, enquanto ajudava o irmão a voltar à forma de rapaz, como se tudo aquilo fosse muito natural. – Vocês na Terra não trocam a substância com a natureza?
– Não trocamos, não. Nem temos ideia de como é que isso se faz. – disse a Teresa, sem esconder a pena que tinha.
– Não acredito que não saibam, – disse a Arya – de certeza que esse conhecimento está só esquecido.
Ela parecia tão segura que nós começámos a acreditar.

ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride


A Lenda da Matéria #3

 
CAPÍTULO 3
O PLANETA OCULTO
 
Após horas de viagem a uma velocidade absurda, de certeza superior à velocidade da luz, estávamos a chegar perto da nossa estrela, o Sol. Eu estava a ficar preocupado, a IA não tinha voltado a falar connosco desde que concordáramos com esta maluqueira…. Agora parecia que íamos direitinhos para a fornalha espacial que é o Sol. O calor era insuportável e gotas de suor e medo escorriam devagar dos nossos rostos:
Vai correr tudo bem. Disse a Joana Vai correr tudo bem. Repetiu baixinho, como que para nos convencer. Olhámos uns para os outros e juro que vi os olhos do Filipe a brilhar.
De repente ouvimos:
– Modo de navegação plasmático desativado, grande astronauta Joaresa Filéx. Iniciar plano orbital para contornar a estrela-mãe do sistema solar. – Anunciou a IA na sua voz de robô. – Quer dizer, aproximação ao planeta Oculto em 600 segundos.
– Uau, foi por um triz! Disse a Teresa.
– Mesmo, por pouco virávamos churrasco solar! – Brincou o Filipe para disfarçar o alívio que todos sentíamos.
Pouco depois, começamos a distinguir o planeta que se escondia atrás do Sol. Estava numa posição diametralmente oposta à Terra e por isso nunca podia ser observado de lá. A Teresa e a Joana colaram-se ao visor da consola e, com olhos esbugalhados, viram surgir um planeta do tamanho da terra de cor muito escura, quase preto, parece que tinha algo a protegê-lo da nossa vista e de eventuais cometas.
O holograma anunciou:
– Aterragem no planeta Oculto iminente! Quer dizer, segura-te valente astronauta Joaresa Filéx.
Entramos na atmosfera escura que rapidamente se tornou num laranja luminoso. Fomos descendo velozmente e vimos que o que parecia assustador era na verdade um paraíso!
Havia rios amarelos e brilhantes, grandes montanhas azuis e milhares de pontinhos de luz que acompanhavam a nossa descida.
Quando o vaivém tocou no solo o holograma falou:
– Sucesso, sucesso, grande astronauta Joaresa Filéx.
Quer dizer chegámos. Atmosfera composta por 79% de nitrogénio, 20% de oxigénio e 1 % de dióxido de carbono. Quer dizer, é perfeitamente respirável. Autorização para sair.
A Teresa pegou no telemóvel, virou-se para nós e disse:
Então vamos?

ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride


A Lenda da Matéria #2


CAPÍTULO 2
GRANDE ASTRONAUTA JOARESA FILEX
 
Ninguém imagina a carga de dores de cabeça com que acordámos, todos embrulhados uns por cima dos outros. O Filipe tinha os fones enrolados nos caracóis da Joana e a Teresa tinha a última goma, já meia lambida, colada na testa. Eu, que caí por baixo, não sentia as pernas e até já duvidava se ainda lá estavam.
– Estão todos bem? – perguntei a fazer-me de mais calmo do que estava na verdade.
A Teresa disse que sim com a cabeça, mas o ar amarelado com que olhava para mim dizia o contrário.
– Olha que lindo o nosso planeta visto daqui! – disse a Joana, enquanto dava a mão à Teresa e a levava para junto da janela pequenina. A cor começou a voltar-lhe às bochechas.
– É maravilhosa a nossa casa! Daqui até parece que não tem defeitos nenhuns. Mas está a ficar tão longe…
– Não te preocupes, Teresa – disse eu – vai correr tudo bem. Entre nós os quatro, havemos de nos safar disto.
– Deixa ver se tenho rede…
Era o Filipe, com aquela mania dele de resolver tudo com o telemóvel. Bem o espetava para o ar, mas nada. Nem um pauzinho de rede, nem um sintoma de WiFi.
– Não sejas palerma! – disse a Joana – estamos no espaço, pá! Temos de tentar descobrir para onde vamos, e se conseguimos arranjar maneira de voltar para a Terra.
Estávamos todos bastante assustados, e não era para menos. Do outro lado das janelas tudo parecia calmo, mas o nosso planeta estava cada vez mais pequeno e sabíamos que estávamos a viajar à velocidade de 11 quilómetros por segundo…. Lembrava-me bem de ter ouvido o holograma falar nisso.
Fomos carregando em botões e puxando alavancas, meio ao acaso, a ver o que acontecia. De repente, um ecrã iluminou-se e, no meio de nós, apareceu a imagem holográfica de um robô ultramoderno, a falar com uma voz metalizada, como numa imitação dos andróides do Star Wars.
– Saudações. Eu sou a IA ponto AEP barra XX traço 3.0. Quer dizer, a Inteligência Artificial deste vaivém. Quer dizer, o computador de bordo e o navegador. Com quem tenho o prazer de falar?
O nosso espanto era tão grande que falámos todos ao mesmo tempo.
– Joana.
– Teresa.
– Filipe.
– Alex.
– Muito bem, muito bem, grande astronauta Joaresa Filéx, estou às suas ordens. Para onde devo marcar a rota: de regresso ao planeta Terra, ou em frente rumo ao planeta Oculto?
De um momento para o outro, a ideia de voltarmos para casa perdeu metade do interesse…
– Planeta Oculto? Qual planeta Oculto?


ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride


A Lenda da Matéria #1

 
CAPÍTULO 1
O AEP BARRA XX TRAÇO 3.0
 
Até que enfim! Chegámos à Agência Espacial Portuguesa. A Teresa passou a viagem a comer gomas e agora está super enjoada. O Filipe não se calou um minuto e a Joana tirou uma tonelada de selfies! Eu? Eu, adorei a viagem, mas 6 horas é muito tempo!
Lá fora, o vaivém brilha ao sol e é da última geração! Todo automático e todo incrível.
– Alex mexe-te! – gritou-me a Joana. – A turma já entrou toda, só faltamos nós os quatro.
Fomos a correr para o vaivém. Era mesmo fixe! Cheio de tecnologia de ponta e com um holograma em tamanho real que explicava como tudo funcionava.
– Já viste? Só preciso de carregar naquele botão para descolar. Que top! – Exclamou o Filipe.
– Ganha juízo, meu. – Respondi eu.
O holograma continuava a falar:
«OAEP barra XX traço 3.0 é o vaivém mais desenvolvido de sempre, completamente automatizado e preparado para longas viagens espaciais…».
A turma já estava fora do vaivém a caminho do Centro Espacial do Alentejo.
– Bora pessoal, vamos lá – disse a Teresa, enquanto enfiava mais uns doces na boca.
De repente, o Filipe esticou-se para apanhar a última goma da Teresa, atirou-se à bruta e caíram os dois no painel de controlo. Ouvimos um estrondo assustador e o holograma desatou a berrar:
Alerta! Alerta! Alerta!
Descolagem em 5…4…3…2…1…
Descolagem!
Fomos atirados para trás com a força G. Mesmo antes de desmaiar, vi a malta a cair. Quando acordamos já estávamos no espaço.
– Meu e agora? A minha mãe vai matar-me! Sussurrou o Filipe.

ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride

ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride


Uma Experiência Maravilhosa!

Fui desafiada, estávamos ainda em Março, que é quando os narcisos resolvem florir, para participar num projecto - Festival de Escritores, era o título - que partiu de uma ideia da Rede de Bibliotecas Escolares de Felgueiras. A minha participação consistia numa actividade de escrita criativa e colaborativa, com os alunos do 4º ano da turma 113 da Escola Básica de Margaride, acompanhados pela professora Clara Dantas.

Três meses passados a trocar ideias e capítulos, palavras e desenhos, gargalhadas e abraços online, é um prazer e um orgulho poder partilhar o conto que construímos juntos. Os capítulos ímpares são da autoria dos meus magníficos companheiros da turma 113, e os capítulos pares são a minha tentativa de os acompanhar.

Aqui ficam, portanto, os oito capítulos e um epílogo da maravilhosa história de


A LENDA DA MATÉRIA


ilustrações da Turma 113 do 4º ano da Escola Básica de Margaride 


sexta-feira, 6 de março de 2020

Este ano nas Correntes d'Escritas

Nós lançámos um livro novo... 
E quando digo, nós, quero dizer eu - que escrevi o texto -, e a Sara Cunha - que o ilustrou -, e a Acento Tónico - que transformou tudo num objecto maravilhoso e cheio de ternura!
E quero dizer, também, a Adélia Carvalho e o Valter Hugo Mãe - que trouxeram a sua 'Menina que Queria desenhar o Mundo' e o seu 'Serei sempre o teu Abrigo' - e, por sermos, também, os abrigos uns dos outros, fizemos tudo juntos.
Foi um dia magnífico e muitos mais virão, preenchidos pelo gosto de partilhar histórias, dentro de histórias, que fazem nascer mais histórias...




A HISTÓRIA DE UMA HISTÓRIA
A brincadeira parte da leitura de um conto. Uma história simples que, com a imaginação de um filho e a ternura de uma mãe, vai ganhando forma e cor. Um personagem aqui e uns detalhes acolá, até deixar de ser uma história simples e até se resolver no contrário daquilo que tinha como ideia inicial. A história de uma história faz o conto de si própria ao mesmo tempo que, sem se dar conta, vai mostrando como se desenrola o fio de uma narrativa. Com que cheiros e sabores se enriquece um texto. Com que ideias se constrói ou desconstrói uma aventura.





TÍTULO: A história de uma história

AUTORIA: Raquel Patriarca
ILUSTRAÇÃO: Sara Cunha
DESIGN: Sara Cunha
ISBN: 978-989-54576-0-1
DEP. LEGAL: 460673/19
1.ª EDIÇÃO: outubro 2019
IMPRESSÃO: EIGAL
ACENTO TÓNICO Avenida Marechal Gomes da Costa, 31,
4410–146 São Félix da Marinha 
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Escutava o Crescer do Tempo*

pequena viagem de regresso
às palavras que Sophia escreveu para a infância


A Página da Educação | Inverno 2019 | Nº 214

Era uma vez.
Todos os contos infantis de Sophia começam assim. Era uma vez… Todos excepto, claro, aquele que começa por “A Dinamarca fica no Norte da Europa”. E esse é o meu preferido.
Escrevo estas linhas já muito perto do fim da tarde do dia 6 de Novembro de 2019. O fim de tarde em que passam cem anos sobre o nascimento de Sophia. Um centenário que, sem nenhuma razão plausível, sinto que me toca de muito perto. Como se fizesse parte de mim, ou eu parte dele. Como se Sophia, eu, Oriana, a Menina do Mar, Ruy, o Cavaleiro e todos os outros fizéssemos parte da mesma família. Todos habitantes de uma só alma como de uma casa onde a porta, sempre aberta, é feita de braços em espera.
Naquele momento sensível e silente que antecede a escrita, fiz rodar o puxador numa outra porta, sentei-me no chão em frente a uma estante, e, cumprimentando-os um a um como a velhos amigos, fui reunindo no colo os contos de Sophia, estações de uma pequena viagem de regresso às palavras que escreveu para a infância. Para a minha infância. Abri-os e reconheci-os com vagar. As ilustrações e o toque do papel.
Quando eu era pequena, quando conheci pela primeira vez a Fada Oriana e o Cavaleiro da Dinamarca, Sophia era para mim essa escritora com palavras descomplicadas, que soavam tão bem ao contar, e que traziam tão claros os cenários à minha cabeça. Depois, como o tempo, também eu fui crescendo. Mais tarde, conheci uma outra Sophia. A poetisa e ensaísta. Lia-a e admirava-a de longe, perfeita, luminosa, etérea. Não conseguia imaginá-la a ocupar as mãos em coisas mundanas, a dobrar roupa ou a fazer arroz. Estou até certa de que, calhando de estarmos só as duas, sentadas na frente uma da outra, numa mesma sala, eu seria incapaz de lhe dizer uma só palavra.
“A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. […] E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.” Foi assim que se deu a ler em Arte Poética II e, para mim, Sophia passou a habitar a substância do poema.
E agora, com estes livros de volta no meu colo (alguns meio desfeitos, um par deles novos por terem vindo substituir outros, entretanto perdidos), volto a senti-la muito perto. Tão perto que juraria nunca ter havido distância ou ausência.
Inesperadamente, mais do que reencontrar a minha Sophia nos meus livros, reencontrei-me a mim nos livros dela. Descobri que, afinal, sempre fizeram, e fazem ainda, parte da minha casa. Aquela mesma casa em abraço, que se constrói connosco por dentro e passa a morar em nós.

Certa vez, ouvi a Hélia Correia, brilhante escritora – tenho para mim que os escritores partilham uma alma muito grande, como partes de algo maior e, por isso, gosto de os escutar como quem escuta a canção da chuva. Ouvi a Hélia Correia, dizia eu, que comparava as palavras de Sophia a tesouros que corremos o risco de estragar assim que lhes tocamos. Invocava a circunstância de vermos brilhantes, belas e intocadas as pedrinhas na beira do mar, cobertas por uma camada fina e transparente de água. Se nos apropriarmos delas, se estendermos as mãos para lhes pegar, começam logo a perder o brilho e a beleza de antes. Reconheci muita verdade no que ouvia mas, ao mesmo tempo, senti o pensamento fugir-me para as páginas d’A Menina do Mar, senti-me de pés molhados e frios, em descoberta dos carreirinhos de água que correm pela praia. Havia pedrinhas e conchas e eu peguei em todas para as guardar para mim, enquanto na minha cabeça soava uma voz delicada que dizia “Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos na água com ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia fina, branca, lisa” (A menina do mar, p. 15).
E que livres eram o Menino da Terra e a Menina do Mar. Que livres eram Ruy e os ciganos. Como os meus pensamentos que voavam entre o fundo do mar e os prados onde as “fontes corriam em cascata, o musgo cobria as pedras enormes, um curto vento agreste surgia entre as árvores” (Os ciganos, p. 22). E enquanto Ruy “à noite abria a janela do seu quarto, respirava o vento que vinha de longe, olhava as estrelas e pensava na liberdade” (Os Ciganos, p. 9), eu sonhava também, com tantas coisas que já nem me lembro, tanto me fazia que fossem possíveis ou impossíveis. Porque os sonhos, como os ciganos do conto, não sossegam. “Nós não moramos aqui nem em nenhum outro lugar [...] Nós não moramos, nós vamos” (Os ciganos, p. 23). E eu ia também, do fundo do mar para os bosques encantados, e daí para os parques e jardins onde as árvores eram todas muito dignas e as flores todas muito humanas. Onde as estátuas sonhavam durante o dia e ganhavam vida pelas horas da noite. Onde a alegria chega a todas as criaturas por igual e “tudo é uma festa: é uma festa o orvalho da manhã, é uma festa a luz do sol, é uma festa a brisa da tarde, é uma festa a sombra da noite” (O Rapaz de Bronze, p. 24).


Os três Reis do Oriente | ilustração de Noronha da Costa
cortesia da Editora Figueirinhas

Certa vez ouvi o professor Diogo Alcoforado, brilhante filósofo – tenho para mim que os filósofos partilham uma alma muito grande, como partes de algo maior e, por isso, gosto de os escutar como quem escuta o beijo do vento. Ouvi o professor Diogo Alcoforado, dizia eu, a realçar o cuidado rigoroso e comprometido de Sophia, a forma como convivem interligadas as dimensões ética e estética em tudo o que escreveu. Reconheci muita verdade no que ouvia e senti o ecoar dos versos de amor pela verdade, pela integridade, pela dignidade. “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude / Para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo mas tu não” (Porque os outros se mascaram mas tu não, Mar Novo, 1958) e “Com fúria e raiva acuso o demagogo / E o seu capitalismo das palavras // Pois é preciso saber que a palavra é sagrada / Que de longe muito longe um povo a trouxe / E nela pôs sua alma confiada” (Com fúria e raiva, O Nome das Coisas, 1977).
E, porque os contos trazem a mesma medida de ética e estética, lembrei-me da pequena ironia escondida nos dilemas da Isabel e do Anão d’A Floresta que, na necessidade de encontrarem alguém verdadeiramente merecedor de receber o grande tesouro (que fora de malfeitores e, depois, de frades, para se quedar, finalmente, à guarda do Anão e da Menina), tenham encontrado apenas dois homens dignos. O músico professor que também faz versos, e o cientista que tem tanto de sábio como de louco. “Quando fores crescida – disse o professor de música – escreve esta história. As coisas que passam ficam vivas para sempre numa história escrita” (A Floresta, p. 67). E é tal e qual assim. As coisas que passam ficam vivas na história escrita e ficam vivas em nós que a lemos. Mesmo sem nos apercebermos do que está a acontecer, as histórias vivem em nós, e não faz diferença que contem “coisas que passam” ou que se imaginam.
E não são só as histórias, são também as personagens.
Percebi, algures durante esta minha viagem, que tenho andado a seguir as pisadas da pequena Oriana. Parece infantil, bem sei, mas era uma criança quando a conheci e, sem nunca duvidar da sua real existência, tive muita pena de não ser capaz de a ver para podermos brincar as duas. Era muito arrumado aquele seu mundo de bem e de mal, como se alguém o tivesse penteado de risco ao meio. “Há duas espécies de fadas: as fadas boas e as fadas más. As fadas boas fazem coisas boas e as fadas más fazem coisas más” (A Fada Oriana, p. 7). São palavras tão simples e directas, tão categóricas que é quase impossível uma criança não entender que lhe dizem: tens aqui dois caminhos, vês? Agora vai e escolhe um. Que bonito era pensar que “as fadas boas regam as flores com orvalho, acendem o lume aos velhos, seguram pelo bibe as crianças que vão cair ao rio, encantam os jardins, dançam no ar, inventam sonhos e, à noite, põem moedas de oiro dentro dos sapatos dos pobres” (A Fada Oriana, p. 7). Deve ter sido logo no fim do parágrafo que eu, criança ainda, decidi que havia de ser uma fada boa. Isso mesmo. Quando for grande quero encantar os dias e encantar as noites. Claro, não sei como manipular o orvalho nem sei onde hoje se arranjam moedas de ouro para esconder nos sapatos dos pobres, mas há sempre algo menos metafórico que pode melhorar o dia alguém. Uma palavra, um abraço ou um sorriso. Sobretudo um sorriso. Ou uma história bem contada, um xaile feito de tricô e ternura. Procuro, mais do que qualquer outra coisa, não dar muita importância a pérolas e cumprir as minhas promessas. Claro que eu, como a Oriana e, suponho, como a maioria das pessoas, tenho perdido muitas vezes as asas. E, também, como ela, procuro recuperá-las, com teimosia e dignidade, em doses talvez iguais.
Percebo agora que trago a Oriana ao colo, ou, então, é ela que me carrega ao colo a mim. Aprendi com ela que é fácil ser-se digno quando o mundo nos confere dignidade; o desafio está em sermos dignos mesmo quando nos tratam indignamente.
E claro, esconde-se cá em casa (quem sabe, reflectida entre os copos do louceiro) a pequena Joana que, fiel ao amigo e perante a oportunidade de fazer um gesto inteiramente bom, não conseguiu esperar pelo nascer do sol. “Amanhã vou-lhe dar os meus presentes – disse ela. Depois suspirou e pensou: Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal. […] Hoje, – pensou – tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite e Natal” (A Noite e Natal, p. 24-25).

Certa vez ouvi a Luísa Malato, brilhante professora – tenho para mim que os professores partilham uma alma muito grande, como partes de algo maior e, por isso, gosto de os escutar como quem aguarda as ondas do mar. Ouvi a Luísa Malato, dizia eu, falar da inequívoca dimensão literária de toda a escrita de Sophia. Reconheci muita verdade no que ouvia e senti-me transportada para o passado longínquo em que viveram os Reis a quem chamamos de Magos. Revivi a sensação de, criança ainda, receber um texto que parecia escrito entre iguais. Nenhum sintoma de pequeneza, palavras apenas, numa beleza clara de luz e de espanto.
“Escutava o crescer do tempo [dizia]. A solidão criava em seu redor um transparente espaço de limpidez onde os instantes avançavam um por um e o universo inteiro parecia atento. O silêncio era como a mesma palavra inumeravelmente repetida” (Os três Reis do Oriente, p. 13). Quando eu era criança, nós não estávamos habituados a que nos escrevessem assim e era, numa palavra, encantador.
Mais do que as palavras, as preocupações eram elevadas, os sentimentos eram complexos. Era impossível não me sentir a crescer, igual ao tempo, igual aos sonhos dos Reis que, em vigília, aguardavam a chegada da estrela. “A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas e confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém caminhava. [...] E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria” (Os três Reis do Oriente, p. 29).
E, depois, há aquele jeito único de escrever as árvores, o mar, a lua como ninguém mais escreve. De elevar à categoria de maravilhas as essências mais simples. “O povo dessa ilha sentia-se feliz e orgulhoso por possuir uma árvore tão grande e tão bela. Uma árvore enorme que crescia numa ilha muito pequenina” (A árvore, p. 11). Eu lia e acreditava na simplicidade de ser feliz. E, mesmo quando a árvore se transformou em barca, o contentamento perdurou porque “às vezes, nas noites calmas de Verão ou de Outono grupos de pessoas embarcavam e iam até ao largo ver a lua cheia sobre o mar” (A árvore, p. 21). Hoje ainda acredito que a felicidade há-de ser algo simples. Mas também compreendo como é fácil ver tudo a complicar-se à nossa frente, como nuvens que escondem as ramadas das árvores e o reflexo da lua no mar, e tenho muitas saudades da simplicidade feliz que, na maior parte dos dias, só vivem nas páginas dos meus livros.


A Noite de Natal | ilustração de Júlio Resende
cortesia da Editora Figueirinhas

Certa vez ouvi a Ana Luísa Amaral, brilhante poetisa – tenho para mim que os poetas partilham uma alma muito grande, como partes de algo maior e, por isso, gosto de os escutar como quem sente o estender dos raios de sol. Ouvi a Ana Luísa Amaral, dizia eu, que falava do Cavaleiro da Dinamarca e contava passagens inteiras de memória como a dizer poemas. Mostrava o poder de encantamento que têm as palavras de Sophia, de como nos dançam nos sentidos antes mesmo de lhes darmos o sentido que trazem às frases. Reconheci muita verdade no que ouvia e pensei em como a viajem do Cavaleiro nos leva a conhecer as palavras e histórias encantadas de outros poetas, de outros sonhadores. Distinguimos os ecos de Shakespeare e de Dante, os traços e as cores de Giotto, as descobertas e desventuras de Pêro Dias, irmão de Bartolomeu, aquele que transformou, para sempre, a Tormenta em Esperança.
Guardo muita ternura àquele viajante que ouço, com a toada doce e pausada da Ana Luísa Amaral, a rezar “pelo fim das misérias e das guerras, […] pela paz e pela alegria do mundo.” Tenho-lhe ternura porque quer ser bom, porque “pediu a Deus que o fizesse um homem de boa vontade, um homem de vontade clara e direita, capaz de amar os outros” (O Cavaleira da Dinamarca, p. 11). Não me é fácil a fé que acompanha o Cavaleiro, que acompanhava Sophia, mas reconheço a verdade intrínseca nos propósitos dele e nas palavras dela.
Não sei bem o que é. Talvez o gostar muito do Natal, talvez o gostar desmesuradamente de ter junta toda a família, mas a demanda do Cavaleiro da Dinamarca toca-me em todas as cordas e deixa-me sempre a precisar de um abraço.
Quem sabe se é a resistência para fazer cumprida a promessa de retorno. Aquele sonho de completude, o sentimento tão humano, essencial e familiar de vencer a lonjura, a mudez e a escuridão em que tantas vezes nos perdemos. O desejo de fazer recuar a treva, de ver “a maior árvore da floresta coberta de luzes” (O Cavaleiro da Dinamarca, p. 72). Uma árvore como um farol de milagre que é sempre possível para todos. Uma claridade muito alta e muito forte, a luz e que, finalmente, nos carrega de volta a casa.


Raquel Patriarca
in: A Página da Educação | Inverno de 2019 Nº 214 | pp. 46-49

esta viagem faz paragem nas seguintes estações:

*Os três Reis do Oriente, p. 13.
A Menina do Mar. Il. Luís Noronha da Costa. Porto: Figueirinhas, D.L. 2004.
A Fada Oriana. Il. Teresa Calem. 37ª ed. Porto: Porto Editora, 2014.
A Noite de Natal. Il. Júlio Resende. Porto: Figueirinhas, 2004.
O Cavaleiro da Dinamarca. Il. Armando Alves.37ª ed. Porto: Figueirinhas,1994.
O Rapaz de Bronze. Il. Fedra Santos. Porto. Figueirinhas, D.L. 2004.
Os Três Reis do Oriente. Il. Fedra Santos. Porto: Figueirinhas, D.L. 2002.
A Floresta. Il. Teresa Olazabal Cabral. 35ª ed. Porto: Figueirinhas, 2004.
A Árvore. Il. Armando Alves. 10ª ed. Porto: Figueirinhas, 1999.
Os Ciganos. Co-aut. Pedro Sousa Tavares. Il. Danuta Wojciechowska. Porto: Porto editora, 2013.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A Bactéria das Histórias


mediação da leitura para a infância como uma actividade de contágio
(reflexão em quatro movimentos com origem no livro)

Raquel Patriarca

a missão

Primeiro Movimento: Sobre a Missão
Venho hoje falar-vos dessa maravilhosa actividade que é a mediação da leitura. Claro que, dito assim, “eu sou mediadora da leitura de livros”, não soa a uma profissão muito desafiante. Mesmo dizendo “adoro aquilo que faço, até tenho jeito e sei o que estou a fazer”, a mediação da leitura é, ainda, uma actividade de… bem, de totós.
Aposto que nenhuma criança sonha ser um mediador da leitura quando crescer. Nessa matéria, os bibliotecários continuam a perder para os bombeiros, os palhaços e, claro, os astronautas. O que esta malta ainda não sabe é que viver dentro dos livros é uma forma quase tão eficaz de andar sempre na lua como ser astronauta.
Entendo a missão de mediador da leitura, e não uso a palavra ‘missão’ ao acaso, como um conjunto integrado de acções, uma espécie de processo que compreende várias etapas e que, no final, tem como objectivo o transporte de uma história ou de um livro entre as estantes da biblioteca e a alma de alguém.
Claro, como toda a arte que se preze, estas coisas dos livros e da leitura são muitas vezes empurradas para o campo do inútil e isso, além de triste, é grave. Porque a acepção de ‘utilidade’ que se gasta hoje em dia traz sempre por arrasto três critérios que viciam o juízo: o da visibilidade – que atribui valor apenas àquilo que é visível, e quanto mais visível melhor –; o do imediatismo – que entende como útil somente aquilo que demonstra utilidade agora –; e o da rentabilidade – que só vê utilidade naquilo que é rentável, de preferência rentável de forma bem visível, e agora.
Estou a perder, pelo menos, três minutos dos vinte que me deram a falar nisto porque me parece importante, e útil, termos presente que a esmagadora maioria do trabalho que fazemos é invisível e inquantificável, os frutos só se colhem passado muito tempo e as, mais das vezes, longe da nossa vista.
É por ser uma ‘missão’ que estes critérios não se aplicam à mediação da leitura. Como qualquer ‘missão’, é um labor em que muitas vezes parece que entregamos mais do que trazemos. Mas só parece. Nós sabemos que não é assim, porque percebemos o momento “sensitivo e consciente” em que tocamos alguém com uma história ou um poema. Porque o conhecimento do passado e a experiência de incontáveis bibliotecários, desde a Biblioteca de Alexandria até à Biblioteca Municipal da Maia, nos diz que assim é. Porque acreditamos na “fé poética”.
O problema é que vivemos num mundo em que os profissionais bem-sucedidos se medem pelos mesmos três critérios do visível, do imediato e do rentável. O mesmo mundo que nos trata com o paternalismo próprio que se guarda aos que não ‘vivem no mundo real’. Mas esse problema é deles e não nosso. Porque nós acreditamos no valor intrínseco daquilo que fazemos.
Na verdade, de totós só temos a aparência. O que conta é o que trazemos de pensamento livre e sábio, e de espírito missionário e guerreiro.
Quando ouço aquela pergunta típica do “para que serve?” Para que serve a leitura? Para que serve a arte? Para que serve a poesia? Para que serve a filosofia? Bem, para fazer perguntas melhores, é a resposta que me ocorre logo. Mas a melhor resposta, a que trago sempre comigo e que nunca me falha, é a do filósofo Núccio Ordine, que diz, simplesmente: A arte, a literatura, a filosofia não servem. As actividades da criação e do pensamento não são servis, sabem apenas libertar. Nós não vivemos no mundo real porque escolhemos não o servir. Escolhemos o caminho, bem mais sinuoso, de ajudar a criar um mundo real melhor.
Seja como for, e sabendo à partida que cada um de nós alimentou o sonho secreto de ser astronauta, e que só está aqui hoje porque esse propósito correu mal, o que me proponho a fazer é, em primeiro lugar, provar-vos que a mediação da leitura é uma actividade muitíssimo pertinente, honrada e gratificante, cheia de beleza e significado. E, em segundo, partilhar convosco os dois elementos que penso serem essenciais para um bom cumprimento desta missão.

a riqueza

Segundo Movimento: Sobre a Riqueza
Lembram-se de vos ter dito que os frutos do trabalho do mediador não se podem quantificar no imediato e dentro dos modelos convencionais? Isto não significa que não haja formas de percebermos como é importante aquilo que fazemos.
Temos, hoje, como inequívoco que há uma relação directa entre os índices de produtividade, riqueza, participação cívica, e paz social de um país, e os seus níveis de literacia.
É precisamente isso que nos diz o Manifesto IFLA / Unesco sobre Bibliotecas Públicas (1994). Que “a liberdade, a prosperidade e o desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos são valores humanos fundamentais. Só serão atingidos quando os cidadãos estiverem na posse da informação que lhes permita exercer os seus direitos democráticos e ter um papel activo na sociedade. A participação construtiva e o desenvolvimento da democracia dependem tanto de uma educação satisfatória, como de um acesso livre e sem limites ao conhecimento, ao pensamento, à cultura e à informação”.
Qual é a nossa ‘missão’, afinal? Colocar com muito cuidado as sementes que, um dia e algures longe da nossa vista, farão nascer os frutos da liberdade, da prosperidade e do desenvolvimento.
É só. Coisa pouca.
Estou em crer que, por esta altura, já vocês pensarão que eu sou uma pobre alma, irremediavelmente perdida na ilusão de que é possível salvar o mundo com livros. A verdade é que ainda ninguém me convenceu do contrário.
Salvar o mundo com livros… claro que é possível.
Pois se toda a cultura ocidental radica nas parábolas de um livro, cujo título é, ainda por cima, A Bíblia que significa, literalmente, O Livro. Pois se Cristóvão Colombo atravessou o oceano certo de que encontraria um continente porque, por obra do destino lhe terá  ido parar às mãos o destroço de papel – quem diria que um dos únicos sobreviventes do naufrágio de uma barca junto à Costa de Labrador seria um diário de bordo –, que era, no fundo, um livro. Pois se o nosso conhecimento científico sobre a natureza e a evolução das espécies nasceu das reflexões de um choninhas que, depois de inúmeras viagens e observações entre tartarugas, iguanas e passarinhos, decidiu – querem adivinhar? – escrever um livro.
São incontáveis os exemplos de livros que marcaram o percurso da humanidade. A forma como nos entendemos a nós próprios, a forma como nos relacionamos uns com os outros, a nossa explicação com o mundo estão intrinsecamente ligados aos livros que lemos e que damos a ler.
A Fábulas de Esopo (séc. VII-VI a.C.), A República de Platão (ca. 380 a.C.), Diário da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia (1497), Os Direitos do Homem de Thomas Paine (1791), O Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848), A Cabana do Pai Tomás de Harriet Beecher Stowe (1852), A Origem das Espécies de Charles Darwin (1859), O Diário de Anne Frank (1947), o Segundo Sexo de Simone de Beauvoir (1949), A Difícil Caminhada para a Liberdade de Nelson Mandela (1965)… são apenas alguns dos muitos livros que marcaram o rumo da humanidade.
Os livros são instrumentos de um poder imenso e imprevisível. Não é por acaso que as primeiras iniciativas “culturais” de qualquer ditadura, seja velada ou assumida, é criar uma lista de obras de regime, e outra, de obras a abater.
Na faculdade tive um professor que nos ensinou uma verdade fundadora e que dizia mais ou menos isto: o mundo tem muito mais de bom do que de mau; o problema é que o ‘Bem’ é naturalmente livre e espontâneo, e o ‘Mal’ é naturalmente assertivo e organizado.
Ora nós, meus amigos, somos bibliotecários. Isso quer dizer que não há nada que não sejamos capazes de organizar, contando que tenhamos uma boa base de dados e um sistema de cotas inteligente e dinâmico. Nada nos impede de catalogar todas as boas ideias que encontramos por aí, livres e espontâneas, e de as usarmos para mudar o mundo. Um livro de cada vez.
Quando digo ‘um livro de cada vez’ não estou só a usar uma frase bonita. Estou a estabelecer um percurso estratégico. Estou a dividir uma tarefa imensa e esmagadora –salvar o mundo com livros – em partes pequeninas e acessíveis.
As maiores viagens começam sempre com um pequeno primeiro passo, dizia Bilbo Baggins, e é verdade. A nossa missão cumpre-se um livro de cada vez. A começar, quase sempre da mesma maneira: ‘Era uma vez…’.
Vou directa ao ‘Era uma vez’ porque um leitor deve começar a construir-se muito cedo. Antes mesmo de aprender a ler. E, claro, o pequeno primeiro passo dessa grande viagem não se faz com Os Versículos Satânicos de Salman Rushdie, mas é importante criar na infância um leitor que, quando adulto, seja capaz de ler o dito livro e que, ao mesmo tempo, seja incapaz de o queimar ou de bater no seu autor.
Começamos com A Maior Flor do Mundo para podermos caminhar, seguros, rumo ao Evangelho Segundo Jesus Cristo. Começamos, com vagar e ternura, certos de que, depois dos autores de livros infantis, venham todos os outros autores, e com eles a pluralidade de perspectivas, o pensamento livre, o conhecimento crítico e verdadeiro, e, finalmente, as ferramentas da liberdade, da prosperidade e do desenvolvimento.
Pelo meio, naturalmente, e além de contos, crónicas, poemas e romances, aprendemos a ler problemas de matemática, manifestos políticos, ensaios de filosofia e, mais importante de tudo, cartas de amor.

o conhecimento

Terceiro Movimento: Sobre o Conhecimento
Entramos, agora, no domínio dos dois elementos que penso serem essenciais para levar a cabo uma boa actividade de mediação da leitura.
O primeiro elemento essencial é o conhecimento.
Devemos saber muito sobre livro que vamos trabalhar. Saber sobre o assunto, o conto, a história, os personagens, o tempo, os lugares; e, claro, essa eterna incógnita que é o autor; sem esquecer o livro em si, porque às vezes o livro tem histórias para contar que não só aquela que traz lá dentro.
Digo saber muito, não digo saber tudo, e não é por acaso. Saber muito sobre algo ou sobre muitas coisas é excelente. Saber tudo (ou pensar que se sabe tudo) é, na verdade, uma tragédia que impede a possibilidade de descoberta a que o poeta Diogo Alcoforado chama de ‘revelação’. A crença no ‘saber tudo’ mata a curiosidade do ‘saber mais’, e arruma no sótão a capacidade de encantamento a que a poetisa Sophia de Mello Breyner chamava de ‘espanto da luz’.
O melhor da humanidade (além das crianças, e sobretudo nas crianças) não é aquilo que se sabe, ou o conjunto do conhecimento reunido. O melhor da humanidade é a sua capacidade de aprender. E é com esta maravilha que nós, mediadores da leitura, somos chamados a trabalhar.
E o que é que aprendemos hoje? Que todos queremos secretamente ser astronautas, e que, quando citamos poetas e filósofos, tudo o que dizemos soa melhor. Mais inspirador. E é isso mesmo que estou a fazer. A tentar criar inspiração para saber mais.
Porque para podermos, com competência, levar os outros a aprender, temos de estar dispostos a aprender também. Temos de ser bons intérpretes para ensinarmos a interpretar.
Quando levamos um livro debaixo do braço para uma biblioteca, uma escola ou um banco de jardim onde vamos contar a sua história, esse livro tem de ser já um velho amigo, de lombada partida, esquinas gastas, páginas anotadas, costuras descosidas. 
Se entendemos um livro como um mundo, entendemo-nos a nós como os seus exploradores. Devemos percorrer as suas avenidas largas e, também, as ruas pouco iluminadas; escalar as montanhas e navegar os oceanos; devemos visitar todos os seus habitantes, saber dos sonhos que alimentam, dos sentimentos que escondem e dos feitos que pretendem levar a cabo; devemos perceber quais as escalas do tempo, as importâncias e as banalidades que por lá se perdem; o fio condutor da história de núcleo, que cresce no centro do livro como uma árvore sagrada, e, também, as narrativas paralelas que voam à sua volta como borboletas.
Devemos tomar notas, construir esquemas e desenhar mapas. Devemos ler muito e entender o mais possível, até àquele ponto de leitura de que falava Agostinho da Silva quando dizia “lerás bem quando leres o que não existe entre uma página e outra”.
Só atingindo nós, naquele livro que estamos a trabalhar, o ponto mais completo da leitura crítica, podemos preparar, em completude, o trabalho de mediação para os outros leitores, independentemente do nível de leitura em que se encontrem (pré-leitura, leitura inicial, leitura competente ou autónoma).
Depois de lido o livro ou contada a história, quanto mais subtil o trabalho de exploração, melhor. Sobretudo, nunca dar as respostas às grandes perguntas. Se o percurso de raciocínio mental for dos leitores, terá um valor incomparavelmente maior, porque a ideia ou conclusão a que se chega resulta de uma reflexão concentrada, passando a fazer parte da sua estrutura de pensamento de forma perene. É a ‘revelação’ que provoca o ‘espanto da luz’.
Se, pelo contrário, fizermos nós um solilóquio sobre o tema da história, ou, pior ainda, sobre ‘o que o autor queria dizer’ – que é uma daquelas coisas de que nunca podemos ter a mínima aproximação a uma resposta segura –,  é quase certo que, seja o que for que digamos, vai ser arrumado naquela parte do cérebro onde se encostam os conselhos para lavar os dentes e os pedidos para arrumar os brinquedos: um poço fundo com um ralo largo, que regularmente descarrega para que fique vazio e se possa brincar com o eco que por lá se faz.
E qual é a forma de evitarmos o poço e o ralo do esquecimento? Existem, com certeza, muitas. Diferentes livros pedem diferentes estratégias, da mesma maneira que diferentes públicos exigem diferentes posturas e abordagens.
Individualmente, a criação de um trabalho artístico que lhes permita pensar sobre o conto ou um pequeno detalhe, tentando compreender o trabalho e a escolha que o antecedeu. Ou convidá-los, em grupo, a encenar a história, obrigando-os a mergulhar mais fundo em todos os seus vectores. Ou conversar, simplesmente, com eles. Só assim, com o livro pousado por perto ou com a ajuda de objectos que ajudem à concretização das ideias.
O melhor modelo será sempre aquele com o qual os leitores e o mediador estiverem mais confortáveis, e aquele que conseguir criar uma dinâmica de ‘reflexão – pergunta – resposta – nova reflexão – nova pergunta – nova resposta…’ num formato em que o mediador conduz invisivelmente, entregando aos leitores o papel de reflectir, de formular a pergunta que a reflexão sugere, de procurar uma resposta que lhe há-de servir durante o tempo estritamente necessário a desenvolver uma nova reflexão e, logo a seguir, a colocar uma outra pergunta, melhor e maior.

o contágio

Quarto Movimento: Sobre o Contágio
Estou a chegar ao fim, e só falta tocar no ponto em que tudo volta ao momento de partida e ao título desta conferência que é, precisamente, o contágio.
Parto da premissa que as acções culturais se operam em dois domínios. O primeiro, oficial e institucional, que inclui a criação e o funcionamento das Redes de Leitura Pública e das Redes de Bibliotecas Escolares, o Plano Nacional de Leitura, as relações de Obras de Leitura Obrigatória e Recomendada, as directrizes da IFLA / Unesco, as políticas e projectos nacionais face à literacia, e por aí fora – isto é a acção por Decreto. O segundo domínio, informal e pessoal, inclui aquele momento de silêncio em que somos nós o veículo de transporte de uma história ou de um livro entre as estantes da biblioteca e a alma de alguém – isto é a acção por contágio.
Já lemos o livro várias vezes, já o estudámos e compreendemos bem. Conhecemos o que nos diz e o que nos esconde, as coisas que se revelam livremente e aquelas a que chegamos depois de as interpretarmos. Levamos preparada a sessão, as brincadeiras e o possível rumo das conversas. Estamos, finalmente, na frente dos nossos leitores e, agora, importa apenas uma coisa: criar entre nós, os ouvintes e o livro, um espírito de conforto, de encantamento, de entrega e de prazer. Uma memória categoricamente boa que se reproduzirá depois espontaneamente por outros espaços e tempos, outros livros e leituras. Os livros e as histórias precisam de ser inconscientemente associados a momentos de prazer. Fazemos isto cuidadosa, planeada e maquiavelicamente. Viciamos os leitores antes que eles tomem consciência do que está a acontecer e depois, será tarde demais.
Vive comigo uma frase da poetisa americana Maya Angelou que diz o seguinte: “as pessoas não se lembrarão de ti por aquilo que lhes dizes, recordar-te-ão apenas pela forma como as fazes sentir”.
É isto, no fundo, o contágio que queremos provocar. Usamos a nossa voz e a nossa postura para criar empatia e a entrega à história. E porque se nós formos genuínos no amor que colocamos na leitura, eles serão capazes de o sentir, usamos o amor que nós próprios temos aos livros e o entusiasmo que eles provocam em nós para contagiar os outros.
E usamos a ‘fé poética’. Aquele conceito mágico que gostava de ter sido eu a inventar, mas um senhor chamado Samuel Taylor Coleridge lembrou-se dele em 1817 e, portanto, muito antes de mim.
Falava ele numa espécie de pacto silencioso entre o livro e o leitor. Um pacto silencioso baseado na concepção de personagens, cenários e acções criando-lhes “uma empatia e uma semelhança com a verdade que permitam chegar a esse espaço de sombra entre a realidade e a imaginação, essa suspensão voluntária e momentânea da descrença que se constitui em fé poética”.
A fé poética resume à essência do encantamento aquele nosso momento de leitura e partilha e, por isso, serve perfeitamente para o definir.
É o reino da fantasia a fazer o caminho para chegar à verdade, à liberdade, à prosperidade e ao desenvolvimento. Esse mundo de encantamento é o nosso mundo real. O mundo em que vivemos um livro de cada vez. O mundo em que colocamos bem arrumada a semente de uma boa ideia, esperando que, um dia e longe da nossa vista, os nossos leitores possam assumir a missão de construir um mundo real melhor.
É só. Coisa Pouca.